terça-feira, 24 de novembro de 2009

O SEQUESTRO DO BRANIFF

(Por Eraldo Moura – Nov 2009)

Estávamos no início da década de 70. O Brasil atravessava uma era que é hoje chamada pelos historiadores, de “anos de chumbo”. A imprensa era censurada e só informava o que o governo permitia. Diziam que havia “infiltrados” na manutenção da VARIG. Pessoas que “apareceram” depois do Golpe de 64, foram investidas em cargos de chefia tecnicamente inexpressivos, e você sempre olhava para o lado antes de dar opinião sobre qualquer assunto. Seqüestro de aeronaves, no mundo e inclusive no Brasil, já estava se tornando uma coisa corriqueira. Toda hora se tinha notícia de que o avião tal foi seqüestrado para Cuba ou outro pais, dependendo do interesse do elemento seqüestrador.
Naquele dia, havíamos chegado cedo para trabalhar. Os aviões que estavam em “serviço” já estavam sendo atendidos pelos técnicos correspondentes, os “trânsitos” estavam sendo checados e tudo o mais corria ordeira e sistematicamente até que, lá pelas tantas, começou a circular um boato de que um DC-8 da BRANIFF havia
sido seqüestrado e que estava se dirigindo para o Galeão, para ser reabastecido e prosseguir para Buenos Ayres.
Naquela época, o Galeão só possuía uma pista de pouso, que era a 14 (hoje, 15), de modo que, da porta dos hangares da VARIG, onde se formou um grupo de funcionários, tinha-se visão privilegiada de toda extensão da mesma, permitindo observar-se o BRANIFF, caso pousasse como diziam.
No horário previsto pelos “boateiros-de-plantão”, apareceu um ponto na altura de Caxias que, pelo rastro de fumaça preta deixada (1), deduzia-se ser um jato e, provavelmente, um DC-8. Mais alguns instantes e pode-se vislumbrar perfeitamente um DC-8 da BRANIFF que se aproximava. Só podia ser ele.
O avião pousou normalmente, acionou os reversíveis, freios e continuou o taxi, vagarosamente, ao longo da 14. Mais adiante, antes do fim da pista, havia duas “taxiways”, uma para a esquerda, que levava para o pátio de estacionamento militar (Base Aérea do Galeão) e outra para a
direita, que levava para o pátio do aeroporto civil (Aeroporto Internacional do Galeão). O BRANIFF tomou a taxiway da esquerda, dirigindo-se ao pátio de estacionamento militar e parando no primeiro “T” à direita. Naturalmente fora instruído, pelo rádio, para assim proceder. Lá, já o esperavam a equipe de terra da BRANIFF, com a usina geradora, transportes e demais materiais necessários ao atendimento. Assim que o avião parou, um
mecânico colocava os calços enquanto outro introduzia o cabo da usina geradora no receptáculo correspondente do avião.
Aí começou o drama: Assim que a usina geradora foi colocada, apareceram, não se sabe de onde, várias viaturas militares, que cercaram o avião a certa distância. Eu diria; 50 metros. Imediatamente após o cerco, o mecânico chefe foi chamado ao interfone, para falar com a cabine. Evidentemente, não se sabe o que conversaram. Alguns segundos se passaram até o mecânico tirar os fones do ouvido, desconectar a usina geradora do avião e fechar o compartimento correspondente. Esse procedimento, para a equipe de terra, significa o sinal verde para o avião ir embora; ou seja, “ta contigo”.
O DC-8 acelerou os motores 3 e 4 e iniciou uma curva fechada pela esquerda, evitando as viaturas que o cercavam e iniciando o taxi pela mesma taxiway que o levara até ali. Logo depois, entrou na taxiway à direita, que margeia a pista 14, dirigindo-se para a cabeceira da mesma, em velocidade não muito superior à normal.
Quando o BRANIFF estava a meio caminho da cabeceira, um caminhão de bombeiros, com vários soldados sobre a carroceria, foi atravessado no meio da pista 14/32, esperando impedir a decolagem do DC-8 que, inadvertidamente, prosseguia em direção à cabeceira da 14. Após estacionar o caminhão, os soldados permaneceram sobre a carroceria e outros na boleia, esperando assustar suficientemente o piloto, impedindo-o de tentar a decolagem.
O pessoal da Manutenção estava acostumado a ver dezenas de decolagens diariamente, de todos os tipos de aeronaves, B-707, DC-8, Coronado, Caravelle e conheciam perfeitamente o ponto na pista onde eles costumavam sair do chão (descolar). É verdade que esse ponto variava em função do peso da aeronave e de outros parâmetros mas, na realidade, não diferia muito. O DC-8, por exemplo, assim como o B-707, costumava sair do chão aproximadamente na altura da taxiway que dava acesso ao aeroporto civil ou muito pouco antes, bem além do ponto onde estava estacionado o caminhão de bombeiros. Com aquele caminhão atravessado na pista, certamente não haveria espaço para o DC-8 decolar. Era a opinião de todos, sem exceção.
O piloto ainda não havia visto o caminhão de bombeiros atravessado pois, quando ele estacionou, o DC-8 já havia passado, continuando seu imperturbável taxi para a cabeceira da 14.
O DC-8 chegou à cabeceira da pista 14 e tomou posição para decolagem. Durante algum tempo ficou ali parado, imóvel, surpreso com aquele caminhão atravessado na sua frente, talvez fazendo seus cálculos mentais se deveria ou não tentar a decolagem. O pessoal de manutenção, que agora já era um grupo respeitável, murmurava, quase sussurrando para si próprio: - Ele não vai tentar... – Vai desistir... – É impossível... Ninguém admitia que aquele piloto fosse tentar aquela decolagem impossível. O caminhão estava muito perto.
Decorrido algum tempo, que pareceu uma eternidade, ouviu-se aqueles quatro Pratt & Whitney JT-4, com 16000 libras de empuxo cada um, roncarem com um barulho ensurdecedor, fazendo tremer o chão em volta e criando ondas de choque sentidas mesmo na distancia em que nos encontrávamos, como uma quadriga de puros-sangues puxando sem sucesso uma pedra descomunal.
De repente, o DC-8 dá um pulo para frente, como se tivesse levado um pé-no-trazeiro e começa a rolagem para a decolagem. No início, vagarosamente, depois, mais rápido, mais rápido. Será que ia dar? Claro que não. Os bombeiros, incrédulos, olhavam aquela máquina se aproximando, mas ainda permaneciam firmes em seus postos. O DC-8 aproximava-se cada vez mais do caminhão... E cada vez mais tínhamos certeza de que não ia dar... A certa altura, quando se calculava que não dava mais para parar antes de bater no caminhão, os bombeiros pulam de seu veículo e correm para o gramado lateral à pista, deitando-se para se protegerem e esperar o pior. E o DC-8 aproximando-se com a velocidade cada vez maior.
Em certo ponto, a uma distância ridícula do caminhão, o avião levanta o nariz até quase encostar a cauda no chão e, preguiçosamente, começa a subir. Duvido muito que o piloto, naquele momento, estivesse preocupado com V1, V2 ou Vr, com peso máximo de decolagem, com limites de potência dos motores ou com qualquer outro parâmetro que normalmente se leva em consideração numa decolagem. Lembro-me que pensei comigo mesmo: - Pela primeira vez, lastimavelmente, vou assistir a um acidente aéreo in-loco. E comecei a calcular onde os pedaços do avião iriam parar. Não havia a menor chance de chegarem nem perto de onde estávamos e também não havia a menor chance daquele avião passar pelo caminhão, calculava. Os motores continuavam roncando ensurdecedoramente, indo buscar uma potência que eu não sabia que eles tinham, levando o avião a ganhar altura, mas não o suficientemente.
O DC-8 foi se aproximando do caminhão... Subindo... E... PASSOU. Mas passou com o trem de pouso a, no máximo, dois palmos do caminhão. Mas passou... Inacreditável. E foi embora para Buenos Ayres e nunca mais se soube dele. Será que tinha combustível para isso? Afinal, ele tinha pousado no Galeão para reabastecer e não reabasteceu. Em todo caso, essa foi a história do BRANIFF SEQUESTRADO.
Este piloto, para mim, ou foi um cara muito corajoso (cabra-macho ou gaúcho macho) ou foi muito medroso. Isso fica para os psiquiatras. Talvez sua atitude destemida tenha sido influenciada pelo resultado de um seqüestro ocorrido pouco antes, também aqui no Rio, onde um Caravelle da Cruzeiro teve seu trem de pouso metralhado e gás lacrimogêneo injetado em seu interior. Mas isto é outra história.
(1) – Na época, antes da crise do petróleo, quando o preço do combustível ainda não era elemento chave no projeto dos motores, os fabricantes não levavam o consumo de combustível com a mesma importância que hoje. Por isso, o rastro de fumaça preta, comum nos jatos da época.

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